sábado, 19 de novembro de 2011

e a vaca, vai pro brejo?


-- ah, professor, compra, por favor?

Carlos Roberto nunca havia comprado uma rifa, um bingo, o que quer que fosse, pra ajudar as turmas em que dava aula. Especialmente as turmas de terceiro ano, que sempre faziam alguma coisa para arrecadar fundos para a formatura no final do ano. Não que Carlos Roberto fosse o mais pão-duro dos professores - embora estivesse entre eles -, mas porque, pela sua fama de carrasco, nunca haviam pedido que ele comprasse nada nos seus mais de 35 anos de magistério.

Sua fama de mal começou cedo. O que os alunos mais temiam eram ser chamados para resolver um problema no quadro negro. E ele sempre chamava ao menos um aluno por aula, por sorteio. O sorteio dependia também de au boa vontade. Aluno bom raramente era chamado. Por algum motivo, sempre os alunos que não tinham feito a lição eram os sorteados. Parecia mágica. Mas era mesmo uma escolha determinada. -- Professor sabe quem fez e quam não fez só de olhar pro aluno, gaba-se Carlos Roberto.

Para se ter uma ideia, certa vez ao entregar as provas, um aluno se revolta com sua nota - baixa pra variar. -- Professor, não é possível eu tirar zero! Estudei igual a um cavalo pra essa prova. Carlos Roberto, sempre transparecendo calma, respondeu na ocasião. -- Esse é o seu problema, se tivesse estudado igual gente teria tirado uma nota melhor.

Mas voltemos à rifa e ao pão-durismo do professor. -- Imagina se tivesse comprado uma rifa de cada turma do terceiro ano que dei aula nesses 35 anos? Com uma média de seis turmas por ano, comprando uma rifa de R$ 5, teria gasto quanto? Pergunta. E não responde, porque o professor aqui é ele, e professor de verdade não pode dar moleza e responder sem fazer o aluno pensar. -- Hein, quanto não teria gastado?, insiste, porque odeia quando o aluno não responde de imediato.

-- Uns mil reais, professor.

-- É por isso que não compro, não conseguem nem fazer uma conta básica, e ainda acham que vão se formar?

Carlos Roberto é professor de matemática. Dizem que o pior - no bom sentido, se é que isso é possível - dos professores de uma certa cidade no inteiror do Rio de Janeiro. Tem orgulho de dizer que a cada ano que passa os alunos estão mais ignorantes, e faz conta - pra tudo ele faz conta - de quantos alunos já reprovou. -- Até hoje foram 897. E não me aposento antes do milésimo, diz se sentindo o Romário do magistério.

Dona Nenê, casada com o sujeito, sofreu um bocado no início. Mas em pouco tempo dentro de casa quem mandava era ela. Dizem as más línguas que a dureza do professor nas escolas era um reflexo do que vivia em casa. O mesmo rigor de Nenê com ele era reproduzido nas salas de aula. E coitado dos alunos. Nenê é um doce, um amor de pessoa. Pras visitas. Ninguém imagina o que o professor passa dentro de casa. Não tem conversa. Ou é o que Dona Nenê falou, ou é o que ela falou. Carlos Roberto, temido nas escolas, tem em casa sua dureza como manteiga no verão carioca.

Mas eis que ficou desconcertado quando a Rebeca, a mais burrinha do terceiro ano, pediu para o professor que comprasse uma rifa de uma vaca. Os 'amigos', espiando, esperavam a reação para rirem de Rebeca. Carlos Roberto nunca imaginou que alguém seria capaz de vir lhe oferecer uma rifa. Era temido - e tinha orgulho disso. Esses meninos não respeitam nem mesmo um professor temido, onde esse mundo vai parar?, pensou.

Mais por piedade - acreditem, ele tinha esse sentimento - pelo papel que os 'amigos' queriam fazer Rebeca passar, o professor comprou a rifa. Nem se tocou do que se tratava. -- Quanto é? -- Cinco reais cada uma. -- Uma já está bom o suficiente, me dá aqui e vai estudar que está precisando. -- Brigada professor, você é um amor!

A rifa era de uma vaca, pra quem não percebeu. Coisa rara, mas na turma tinha o Leonardo, filho de pai abastado, fazendeiro da região, que para ajudar o filho disse que daria uma vaca parao churrasco de final de ano do filho. Leonardo, assim como Rebeca, não tinha as melhores notas da turma, nem em Matemática nem em nada. Os 'amigos', sempre eles, aproveitaram-se da 'bondade' de Leonardo e o conveceram a fazer uma rifa da vaca, para arrecadarem grana pra formatura. Daí a inusitada rifa de uma vaca.

Passam se os dias e sai o resultado da rifa. Pra surpresa de todos, o professor é sorteado. Os alunos decidem quem vai dar a boa notícia para o professor. Rebeca, claro. -- Professor, você ganhou a rifa. Que sorte hein!? -- E qual é o prêmio?, perguntou porque na ocasião nem se preocupou com isso. -- Uma vaca. -- Quê?

Carlos Roberto chega em casa na sexta-feira, mas não conta a novidade. Espera o domingo, o almoço de família seria o momento ideal. Além da matriarca, três filhos. Paula, Julieta e o caçula, Carlos Roberto, o Robertinho. Todos estranham, Dona Nenê faz cara de poucos amigos, e Robertinho imagina como seria ter uma vaca no quintal (uma gargem que mal cabe um carro). O caçula sempre teve tino para os negócios. Já se imaginava vendendo leite para os amigos na escola toda manhã, e o lucro seria garantido, porque mato - não era isso que vaca comia? - ele ia pegar na rua mesmo. Estimava que antes dos 14 anos já teria um grande império do leite na cidade, e poderia enfim largar a escola.

Pela cara de Dona Nenê, fosse Robertinho menos ingênuo, daria pra perceber que essa vaca dificilmente ficaria na garagem. Na noite do anúncio da rifa em casa, o casal não foi à missa, como de costume. Nenê estava de cara emburrada, mas não ia discutir na frente dos filhos. Esperou segunda, quando as crianças estariam na escola para falar no particular com o marido. Até hoje ninguém sabe como foi a conversa. Apenas que a vaca nunca chegou na garagem, desfazendo os planos de Robertinho.

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